Renúncia fiscal do querosene de aviação expõe contradições e privilégios no governo do Rio de Janeiro
Enquanto o estado corta investimentos sociais e alega falta de recursos para segurança e saúde, empresas aéreas seguem beneficiadas com redução bilionária do ICMS
A decisão do governo de Cláudio Castro de reduzir drasticamente o ICMS sobre o querosene de aviação (QAV) de 13% para 7% continua provocando indignação entre economistas, juristas e representantes da sociedade civil. A medida, criada pela Lei nº 9.281/2021 e regulamentada pelo Decreto nº 47.750/2021, beneficiou gigantes como Gol, Azul e Latam, sob a justificativa de “preservar empregos” e “estimular o turismo”.
Na prática, porém, o benefício fiscal se transformou em um buraco bilionário na arrecadação, com perdas estimadas de até 15% da receita estadual — dinheiro que poderia ser destinado à saúde, à educação e à segurança pública, áreas que seguem em crise.
Governo alivia grandes empresas e aperta a população
O contraste é gritante. Enquanto as companhias aéreas pagam apenas 7% de ICMS no combustível de seus jatos, o cidadão comum arca com 22% de imposto no gás de cozinha e nos combustíveis. Em muitas comunidades fluminenses, um botijão chega a custar R$ 150, quase quatro vezes o preço de refinaria.
“É um escândalo. O governo alivia as grandes corporações e sobrecarrega as famílias mais pobres. O Rio perdeu arrecadação e não ganhou novos voos regionais. Isso é política para poucos”, critica um auditor da Fazenda que participou da denúncia contra o decreto.
Renúncia fiscal sem retorno comprovado

Dados levantados por técnicos do setor mostram que cada aeronave abastecida no Santos Dumont ou no Galeão representa uma perda média de R$ 170 mil em tributos estaduais. A promessa de aumento no número de voos e de estímulo ao turismo regional nunca se concretizou.
Em Campos dos Goytacazes, por exemplo, todos os voos comerciais regulares foram encerrados. A Azul, uma das companhias beneficiadas, chegou a cobrar tarifas internas mais caras que passagens internacionais.
“A política de incentivo concentrou benefícios no eixo Rio–São Paulo e abandonou o interior. É uma contradição completa com o discurso de desenvolvimento regional”, aponta o economista e professor Fábio Medeiros, da UFF.
Especialistas apontam ilegalidades
Tributaristas consultados consideram que a redução extrema da alíquota pode ferir princípios constitucionais, como o da isonomia tributária e o da capacidade contributiva.
A medida foi contestada judicialmente no processo 00330-5009.2023.19.001, mas acabou sendo mantida pela 5ª Turma do TJ-RJ. O caso agora tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que analisa se o decreto representa renúncia fiscal inconstitucional.
Para a advogada tributarista Marina Valverde, a falta de transparência agrava o problema:
“Não existe relatório público sobre o impacto orçamentário dessa medida. O Estado não pode abrir mão de bilhões sem comprovar o retorno social. Isso fere a Lei de Responsabilidade Fiscal.”
Ciclo de favorecimento político e silêncio oficial
Outro ponto que chama atenção é o histórico de financiamento político das companhias beneficiadas. Embora doações empresariais diretas estejam proibidas desde 2015, grupos ligados ao setor aéreo seguem influentes em campanhas e pautas legislativas — um ciclo de favorecimento institucionalizado.
Apesar das denúncias, o governo Cláudio Castro evita tratar do tema. A Secretaria de Fazenda do Estado (Sefaz-RJ) limita-se a afirmar que o incentivo “segue padrões nacionais” e “visa à competitividade”. Nenhum dado oficial, porém, comprova aumento significativo de rotas, empregos ou turistas.
Desigualdade e descaso estrutural
Enquanto o Estado perde receitas que poderiam fortalecer serviços essenciais, a população enfrenta cortes orçamentários e aumento da violência. O próprio governo justifica a falta de concursos para a polícia e de investimentos em hospitais sob a alegação de “limites fiscais”.
“É uma violência tributária. O Rio está falido, mas o governo prefere beneficiar grandes corporações. Quem paga essa conta é o povo das comunidades”, resume Eduardo Gama, representante de um movimento por justiça fiscal.
Conclusão: o Estado que privilegia o ar e abandona o chão
A política de incentivos às companhias aéreas expõe o desequilíbrio de prioridades do governo fluminense. Enquanto as elites corporativas voam com combustível subsidiado, milhares de famílias continuam presas à terra da desigualdade, pagando impostos altíssimos para sobreviver.
Sem transparência, sem retorno social e sem compromisso com a equidade, o programa de redução do ICMS sobre o querosene de aviação se tornou símbolo de um modelo de gestão que beneficia poucos e penaliza muitos — um retrato do Estado que prefere turbinar privilégios do que abastecer a dignidade do povo.
Edição: Rio Press / Jornal O Contexto
Reportagem especial de Danilo Pires – Investigação exclusiva



